Pra não (m)esquecer.

Vitória Zavattieri
3 min readJan 23, 2020
Créditos: https://alecrimehortela.tumblr.com/

Depois do nosso primeiro encontro tentei desenhar seu rosto no verso de um folheto. Eu não sabia se te veria de novo e tentei inutilmente gravar seu sorriso naquele pedaço papel. Sentada no metrô, eu fiquei irritada comigo mesma, porque meu talento para desenhar não me permitia representar nem um círculo, imagine você. Então meu desenho não tinha muita forma, eram só linhas, tentando expressar o brilho dos seus olhos e o jeitinho que seu cabelo caia perto da orelha. Eu andei com esse folheto de comida chinesa desde então.

Pra minha sorte, eu pude te ver de novo, e minha chula representação de você não era mais minha única fonte de memória.

Com o tempo, eu não precisava mais pegar o metrô, você me levava para cima e para baixo no seu carro com cheiro de chiclete. Você jogava todas as garrafas de água vazias para trás para eu poder colocar os pés.

Eu nunca tentei te desenhar de novo, nem desenhar nada do que vivemos. Por que eu tinha certeza que estava tudo gravado na minha memória. E todas as vezes que eu te via eu relembrava cada traço de momento que já tínhamos vivido.

No nosso enésimo encontro, voltei para casa com bolhas nos pés e um sorriso sonolento no rosto, estava cansada e adicionei mais uma garrafa vazia à sua coleção no banco de trás. No nosso enésimo segundo encontro, deixamos seu carro na beira da praia e você não me culpou por ter molhado seu banco com meu cabelo. No nosso enésimo terceiro encontro, subimos a serra cantando. E eu ria como se todas as suas palavras fossem um trocadilho inteligente e só soltava a sua mão quando era preciso trocar a marcha.

Antes do nosso último encontro, eu estava com as moedas contadas no bolso do moletom. Apesar de não querer muito admitir minha coragem, eu sabia que voltaria de metrô naquele dia. Quando você chegou, com seu carro doce e seu sorriso desanimado, eu sentei e coloquei os pés em meio das garrafas plásticas que você não ligava mais de tirar. Sabemos que eu disse que não precisava, mas você podia simplesmente jogá-las no lixo.

Fiquei segurando aquelas 5 moedas no bolso e contando mentalmente para saber se teria o dinheiro. E tentando discretamente me encorajar.

Ei, você consegue.

Quando sentamos de novo naquele gramado em frente ao museu, eu olhei para você tentando captar cada centímetro de quem você era e tirei da carteira aquele folheto com meu desenho seu. Eu te contei a história e você riu dizendo que eu não tinha muito talento para as artes. Eu ri também, era verdade. Peguei o folheto e tentei comparar com seu rosto, procurei o mesmo brilho nos seus olhos mas os traços do seu sorriso não se encaixavam mais. Só o seu cabelo que continuava caindo do mesmo jeitinho.

Então eu juntei uma coragem que eu não sabia que tinha, e te disse que não me reconhecia mais sem ti. Que todos os meus momentos pareciam depender da sua presença e que isso estava quase acabando comigo. Eu te disse que entre os vários dias que passamos juntos, eu fui deixando coisas passar, fui deixando minha vida entrelaçar na sua até que eu não tivesse mais nada que era só eu.

Quando eu te disse que ia partir, eu vi seus ombros relaxarem e com certeza teria ouvido o crack do seu coração se não fosse o estrondo que eu tinha dentro do peito.

Levantei e pedi que não me odiasse. Como se isso fosse possível.

Recontei minhas moedas no bolso até trocá-las por um passe.

Sentei no metrô e tentei desenhar seu rosto em um folheto de faculdade particular, para marcar e eternizar cada detalhe seu. Mesmo que essa memória fosse sempre ligada aos nossos corações partidos, eu queria não esquecer.

Andei com aquele folheto por um bom tempo, eu não deixei de carregar comigo aquela parte de você, nem o que eu tinha feito com ti. Mas esses dias, depois de correr para não perder a hora, percebi que não estava mais com meu desenho. Algum dia, acabei esquecendo ele em algum lugar.

--

--

Vitória Zavattieri

Paulista/Curitibana, apaixonada por literatura, escritora, redatora, viciada em séries e mestranda de comunicação na França.